Redação
A menos de um mês das eleições, os debates políticos tomam força, mas nem todos produtivos ou saudáveis. Recente pesquisa do Datafolha mostra que 54% dos entrevistados disseram ter vivido situação de constrangimento, ameaça física ou verbal em razão de suas posições políticas nos últimos meses.
Para não se expor, quase metade (49%) admitiu que deixou de falar sobre política com amigos e familiares. E mais: 4 entre 10 entrevistados revelaram que passaram a não comentar ou compartilhar informações políticas em suas redes sociais para evitar discussão.
A falta de qualidade na discussão também aparece em pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva no início de 2022: 7 em cada 10 brasileiros disseram ter dificuldades de dialogar com quem possui opinião política contrária.
O problema não vem de hoje. Um estudo feito em 2016 pelo blog Comunica Que Muda (CQM), iniciativa da Agência nova/sb, monitorou dez tipos de intolerância nas redes sociais. Política foi o tema mais tratado e, de um total de 273.752 menções, 97,4% foram negativas.
Em certos casos, a divergência política leva à violência física. Segundo o Observatório de Violência Política e Eleitoral da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), de janeiro a junho deste ano, foram 214 registros, entre ameaças, atentados e agressões a líderes políticos e seus familiares, um aumento de 23% se comparado o mesmo período nas eleições de 2020. O estudo trimestral teve início em janeiro de 2019 e de lá pra cá o acumulado é de 1.209 casos.
Levantamento do jornal Estadão contabiliza, até julho, 26 homicídios no país por motivação política ou exercício da atividade política, envolvendo agentes públicos, ativistas, entre outros. Os casos deste ano já superam os de quatro eleições nacionais, segundo o veículo, que realiza há 9 anos o monitoramento de assassinatos na política brasileira.
Diversidade
Por que opiniões diversas incomodam tanto se as diferenças são intrínsecas ao convívio social? Marta Zorzal, professora e cientista política do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), explica:
“As sociedades contemporâneas caracterizam-se pela pluralidade de crenças e valores e pela diversidade social expressa nas diferenças de gênero, sexualidade, idade/ geração, raça, classe social e corporalidades distintas, que interagem de modo complexo, promovendo potenciais cenários de desigualdades sociais, assimetrias e hierarquizações.”
Para a pesquisadora, os problemas começam quando se passa a ver o diferente como inferior. “Não há sobreposição hierárquica de pessoas, uma vez que todas estão no mesmo patamar. Desse modo, o valor da tolerância expressa-se nas relações de reconhecimento do outro, mesmo que discordemos de suas crenças e práticas”, pontua.
Marta Zorzal destaca ainda o risco de vincular as diferenças a marcadores simbólicos que traduzem a visão de mundo reduzida a “eu/outro”, “incluído/excluído”, “certo/errado”, “bem/mal”, “amigo/inimigo”.
“O diálogo, nestas condições, torna-se impossível, na medida em que as partes são incapazes de lidar com diferentes modos de pensar e de estar no mundo”, alerta a professora.
Pedro Ernesto Fagundes, doutor em História Social da Ufes, concorda que, quando o outro é visto como inimigo, o diálogo é inviabilizado. “Quando essas diferenças não são tratadas em espaços democráticos de diálogo, acabam virando episódios de violência”, destaca.
Para o historiador, a visão polarizada de certo/errado e amigo/inimigo demonstra a falta de amadurecimento no exercício da cidadania: “Temos um grande déficit de democracia em razão dos períodos de ditadura que vivemos. Tivemos o Estado Novo, de 1937 a 1945, e a ditadura militar, de 1964 a 1985. Os períodos de ditadura acabaram por retardar o amadurecimento da nossa democracia e cada eleição é uma nova chance de aprimorar o debate político.”
Pedro Ernesto ressalta que, a partir da Constituição de 1988, mais extratos da sociedade começaram a ter mais voz e isso tornou o cenário ainda mais heterogêneo e, consequentemente, mais complexo.
“Jovens, mulheres e trabalhadores, por exemplo, passaram a participar mais da vida política. O debate político ficou mais frequente. Cada eleição é uma experiência, um exercício para debater, discutir”, reflete.
Desigualdades
Marta Zorzal, por sua vez, chama atenção para outras razões que contribuíram para o grau de intolerância no Brasil. “Os motivos estão arraigados no modo como a sociedade brasileira passou de uma sociedade monárquica, escravista e autoritária para um regime democrático sem romper com as estruturas de dominação e de exclusão que caracteriza a sociedade até hoje.”
Segundo a professora, nos países democráticos em que as desigualdades não são tão extremas a intolerância política é menor do que a registrada no Brasil.
Além da desigualdade econômica, Pedro Ernesto aponta a falta de representatividade histórica de diversos grupos sociais na política como uma das causas da dificuldade em lidar com visões diferentes.
“A primeira Constituição brasileira não permitia que a maior parte da população votasse. Votar era direito da elite econômica e política branca. Mulheres, escravos e negros libertos não tinham podiam votar, por exemplo. Mesmo após a proclamação da República, em 1989, a participação política era ainda muito restrita. O voto feminino só se tornou legal em 1932. Consequentemente, a ideia de eleição e de partido político era algo restrito, da minoria. E mesmo assim tinha briga, morte, violência…”
Para Marta Zorzal, a falta de representatividade de todas as camadas da sociedade, além de inflamar os ânimos, também é uma forma de violência:
“A explosão dos movimentos negros e feministas dos últimos tempos dão uma medida do que isto significa. Tem a ver com desigualdades extremas e as formas como essas desigualdades se expressam no campo social e cultural do país. Estas desigualdades se expressam em violências diversas, entre elas a super-representação política das elites brancas e abastadas (sobretudo homens) nas instituições políticas brasileiras, que garantem a manutenção do status quo.”
Nesse contexto, observa a pesquisadora, as manifestações de junho de 2013, no Brasil, inauguraram um marco cronológico caracterizado pelo extremismo e por uma guinada à direita:
“Eles emergem com posições inegociáveis, almejando evitar qualquer mudança no status quo da sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que incentivam o armamento da sociedade, utilizando discursos de ódio e violência contra diversos segmentos sociais subalternos. Isto sem contar com os negacionismos à ciência, à vacina, às instituições democráticas, à cultura etc. e os múltiplos efeitos desestruturantes que isto causa no tecido social.”
Segundo a cientista política, os fanatismos encontram terreno fértil para expandir, aumentando tanto a violência simbólica, quanto os homicídios e feminicídios.
Já Pedro Ernesto aponta a busca de soluções rápidas para questões sociais complexas como fomentadora de posições polarizadas. “A ideia de globalização, o modelo de democracia adotado por parte do mundo ocidental pós 1989 (fim da guerra fria) se chocou com a realidade, as crises econômicas, as crises migratórias. Buscou-se assim um discurso do passado, excludente e preconceituoso para encontrar solução rápida para problemas econômicos e sociais. A integração e a diversidade foram vistas como motivos dos problemas sociais. Por isso, a onda de extrema direita tomou proporção maior.”
O professor enxerga a ascensão da extrema direita como um surto autoritário. “Há toda uma tentativa no Brasil hoje de estabelecer um modelo autoritário de política que resgata discursos e valores de décadas passadas (…) Várias figuras e partidos tentam enquadrar a sociedade brasileira em um padrão: o do homem branco e rico que defende valores extremamente estreitos de política, família, religião… As redes sociais amplificaram o discurso de ódio conectado a essa tradição autoritária brasileira.”
Redes sociais e desinformação
Além das redes sociais, o Brasil e o mundo precisaram lidar com outro catalisador da subida da temperatura política: as fake news.
O historiador afirma que o debate faz parte da formação da cidadania. Mas em um cenário de fake news, negacionismo e desinformação torna-se impossível estabelecer um diálogo com pessoa fanatizada. “Acabamos não discutindo agendas importantes como educação, meio ambiente, aumento da fome e do desemprego”, lamenta.
Na visão de Marta Zorzal, atrás das redes é fácil ser intolerante e a qualidade do debate, muitas vezes, não é das melhores.
“As redes sociais são um dos principais locus de discussão entre grupos opostos. No entanto, nem sempre são discussões em torno da troca de ideias e exposição de argumentos racionais. Muitas vezes viram mera troca de insultos e xingamentos. As pessoas não discutem, elas adjetivam ou desqualificam o outro, não reconhecem o outro como um diferente capaz de trazer opiniões distintas. Com isso buscam isolar o outro, impedindo o diálogo e as trocas que poderiam propiciar novos aprendizados.”
Para a cientista política, as redes sociais dão mais amplitude à intolerância: “Elas são tecnologias de comunicação. O uso que é feito dessas tecnologias é que propicia e facilita a manifestação da intolerância que está presente na sociedade. Isto é, a intolerância perpassa as relações sociais em todas as dimensões que marcam as diferenças e a diversidade social.”
Já Pedro Ernesto chama a atenção para o uso das redes sociais como instrumento de desinformação: “Dúvidas sobre a transparência das urnas eletrônicas, por exemplo, geram aumento da temperatura política e servem para inflamar movimentos autoritários. Há bolhas radicalizadas consumindo informação muitas vezes falsas e inflamatórias. Quando a pessoa dessa bolha encontra o diferente, acaba entrando em conflito, até mesmo físico”, esclarece.
O historiador destaca a necessidade de checar informações e fazer um exercício de tolerância. “É importante acompanhar propaganda eleitoral e ler sites oficiais como o do TSE para que seja possível filtrar o fato das fakes news. É fundamental entender que a democracia é a alternância de poder e a convivência dos divergentes. A democracia precisa ser sempre oxigenada com o diferente, com tolerância e liberdade de expressão”, conclui.
Fonte: ALES